Arthur D´Elia dos Santos e Yasmin Ribeiro de Carvalho

 A INDIVIDUALIDADE NA MORAL BUDISTA


O presente texto buscará refletir sobre o modo como comparece a individualidade na moral budista. Para tanto, cabem aqui algumas perguntas. Qual a resposta dada pelo budismo para os dilemas impostos pela sociedade indiana dividida em castas de sua época? Como pode o ser humano atingir maior desenvolvimento espiritual para além das perturbações advindas da ignorância ou do Ego?

Antes de iniciar propriamente, é preciso aqui expor brevemente as características essenciais do hinduísmo e como este se conecta a sociedade dividida em castas. A importância de partir destes aspectos no presente trabalho está no fato de que é impossível entender o budismo sem antes demonstrar seu rompimento com certos elementos presentes no hinduísmo.

 

O hinduísmo e a civilização indiana

Uma teoria evolucionista sugere, acerca da origem da civilização indiana, que por volta do ano 2500 a.c. um grupo de nômades conhecidos como “árias”, oriundo do norte do Irã, ao abandonar o deserto emigrou em seis direções (ANDRADE, 2020). Os que foram ao Ocidente espalharam-se por toda a Europa, sendo eles ancestrais dos povos gregos, romanos, celtas, germânicos e eslavos. Os que foram ao Oriente tornaram-se ancestrais dos indianos (ANDRADE, 2020)

Por conseguinte, ao invadirem a Índia, esbarram com um grupo nativo chamado “drávidas”, grupo este conhecido também como povo da agricultura. Os nômades, com seu caráter guerreiro, conseguem subjugar os nativos (ANDRADE, 2020). Esta subjugação dos nativos indianos (pele escura) por parte arianos (pele clara) foi o que possivelmente originou o sistema de castas (ANDRADE, 2020). O fruto proveniente do encontro entre estas duas culturas foi a complexa religião ritualística conhecida como védica. Posteriormente ela viria assumir diversos nomes como brahmanismo, sanatana dharma e, então, hinduísmo (ANDRADE, 2020).

Inicialmente o hinduísmo tinha como base a preservação da ordem rta, que engloba a interconexão entre o universo de cima com a realidade de baixo. Tal realidade de cima correspondia ao mundo dos deuses, para os quais eram necessários sacrifícios ao redor do fogo (chama subia até os deuses) (ANDRADE, 2020). Já o mundo de baixo era aquele no qual estavam os seres humanos. Para a sobrevivência neste mundo humano era de suma importância tais sacrifícios aos deuses para que eles enviassem chuvas para a boa agricultura (ANDRADE, 2020). Esta dependência mútua era o que mantinha o universo em ordem (ANDRADE, 2020). A casta brâmane era responsável pelo controle dos sacrifícios e, neste sentido, a que comandava o mundo védico (ANDRADE, 2020).

O encontro entre estas duas culturas resultou em transformações como: afirmação de uma visão cíclica e congrega as divindades em um único conjunto, a tríade Brahma, Vishnu e Shiva (ANDRADE, 2020). Os dois primeiros seriam a síntese das divindades trazidas do deserto ao mundo dos nômades, enquanto o último é incorporado dos nativos (ANDRADE, 2020). O processo cíclico aqui já citado poderia ser encontrado na agricultura com a preparação da terra, semeadura, crescimento da planta, sua colheita e morte (ANDRADE, 2020). O caráter cíclico até então encontrado na práxis humana deste momento foi elevado a um aspecto que caracteriza não só a vida humana, mas também às divindades (ANDRADE, 2020).

No livro Bhagavad Gita encontra-se a centralidade da noção de dharma (lei e ordem). As crenças que permeiam a vida espiritual devem estar de acordo com a natureza e leis que regem o mundo (ANDRADE, 2020). Um dos objetivos destas crenças era o de fornecer aportes para que o homem pudesse chegar à harmonia com o cosmos. O que é deixado de lado para a realização da experiência com o divino é a ignorância (ANDRADE, 2020). Maya é o termo usado pelos indianos para denominar o que se conhece como ilusão. Esta última é adquirida quando os humanos perdem a visão do Divino ao penetrarem no mundo fenomênico (ANDRADE, 2020).

Conectado a essa problemática envolvendo Maya está a teoria do Karma. Este conceito pode ser entendido com a ideia de causa e efeito ou ação e reação que, segundo os indianos, estaria presente na consciência humana (ANDRADE, 2020). O Karma, então, se refere às ações humanas e suas consequências nesta vida presente ou na anterior, capaz de determinar a vida futura (ANDRADE, 2020). A ontologia religiosa hinduísta descreve esta questão da seguinte maneira: “o carma é produzido em quatro formas: com pensamentos, palavras, as nossas ações e as ações dos outros, guiadas por nossas instruções” (ANDRADE, 2019, p.39). Não se pode escapar do Karma, pois é uma necessidade do cosmos para a manutenção de seu equilíbrio (ANDRADE, 2020).

No entanto, não se pode confundir esse caráter necessário do Karma com algo como um determinismo absoluto no qual não há lugar para a liberdade humana. Trata-se de uma teia elaborada pelos próprios humanos ao redor de si mesmos que se articulam com escolhas de uma vida passada, presente e que condiciona o futuro (ANDRADE, 2020).    Para que se possa compreender esta articulação entre a vida passada, presente, futura e como evitar uma reprodução mecânica do processo reencarnatório, é imprescindível a noção de samsara. Esta é entendida como um permanecer preso ao ciclo de causas e efeitos e de reencarnações; ou seja, refere-se à série sucessiva de nascimentos (ANDRADE, 2020). Somente com a natureza espiritual, fruto da prática da ética, poderá o sujeito agente fugir desta reprodução mecânica e repetitiva (ANDRADE, 2020). Não obstante, três são os caminhos para o desenvolvimento da natureza espiritual: do conhecimento, do serviço e da devoção (ANDRADE, 2020).

 

Compreendendo a reencarnação

Neste tópico será explicado brevemente o processo de reencarnação. Cabendo aqui realizar algumas perguntas. Como se originou o cosmos? Como é possível conseguir a salvação? Qual a importância da moral ou da ética para a obtenção da salvação?

Bem, segundo a tradição hinduísta, a criação do universo ocorre devido à desintegração do corpo Divino (ANDRADE, 2020). A salvação nada mais é do que o retorno a este corpo (ANDRADE, 2020). Este retorno, na sociedade hindu, pode ser conseguido através da prática ética. Podendo alguns indivíduos conseguir em uma única existência, enquanto outros necessitam passar por várias reencarnações e por vários estágios. Seja na forma de semideuses, seja na de humanos, animais, vegetais e seres inanimados (ANDRADE, 2020).

A possibilidade de libertação do indivíduo provém da moralidade de uma existência correta segundo o dharma, princípios postos pela tradição (ANDRADE, 2020). Moksha é o termo para caracterizar esta libertação do samsara. Porém, sendo toda a criação uma extensão de Deus, pouco importa se é um ser inanimado, um semideus, um animal ou um humano. Cada um destes elementos pode retornar ao Divino. É por isso que os hindus consideram a totalidade do universo como marcada pela vibração constante de Deus (ANDRADE, 2020).

Seguindo o pensamento hindu, nada que o indivíduo recebe é por acaso. O que mantém o ser humano à samsara é a ignorância proveniente do desejo e do prazer (ANDRADE, 2020). Para se libertar destas correntes, é preciso compreender por si só sua condição e se libertar (ANDRADE, 2020). Pode-se concluir este tópico afirmando que no hinduísmo cada indivíduo é responsável por sua vida. Ele recebe princípios para sua conduta de modo a conseguir se libertar (ANDRADE, 2020).

 

O sistema de castas

O sistema de castas indiano remonta a mais ou menos 800 a.C (ANDRADE, 2020). Ainda sobre esta forma de organização no ceio da sociedade: “As castas são, antes de tudo, realidades sociais: famílias, língua, ofício, profissão, território. São uma ideologia: uma religião, uma mitologia, uma ética, um sistema de parentesco e uma dietética. São um fenômeno: não é explicável a não ser dentro e a partir da visão hindu do mundo e dos homens” (PAZ, 1995, p.58). Neste sentido, as castas representam uma organização social e religiosa hierárquicas.

Para um melhor aprofundamento e explicitação das principais castas: “a) Brâmane: possui como origem a emanação a partir da cabeça de Brahma; sua função social é sacerdotal. b) Ksatriya: possui como origem a emanação a partir dos braços de Brahma; sua função social é nobreza e guerra. c) Vaiysia: sua emanação decorre das pernas de Brahma e, por isso, sua função diante da sociedade é o trabalho liberal. d) Sudra: possui como origem a emanação a partir dos pés de Brahma; sua função social é a execução do trabalho manual” (PAZ, 1995, p.58).

Esta divisão de castas era extremamente rígida e complexa (ANDRADE, 2020). O pertencimento a certa casta ou, pode-se dizer, classe social, era definido já no nascimento (BOSIO, 2010). Para o indivíduo conseguir a purificação de sua alma e seu retorno ao Brahma ou até mesmo aparecer numa casta ou classe superior, precisava cumprir suas obrigações em vida e aguardar a próxima reencarnação (ANDRADE, 2020). Desta forma é que se justifica ideologicamente a rígida organização social com um aceno aos indivíduos pertencentes às classes baixas responsáveis pelo trabalho manual com a possibilidade de uma melhor condição material ou espiritual somente em outra vida. Fundamentalmente ao subdividir esta sociedade poderia se encontrar a classe nobre composta por sacerdotes e guerreiros e as classes baixas pelo povo em geral (ANDRADE, 2020).

 

Princípios éticos hinduístas

Os princípios éticos podem ser resumidos quatro: artha, kama, dharma e moksha (ANDRADE, 2020). Cada um com sua própria dinâmica e sempre sustentando o outro (ANDRADE, 2020). O primeiro deles, respectivamente, refere-se à práxis social em geral; aos ganhos e perdas ou êxitos e fracassos (PAZ, 1995). Já o segundo remete ao domínio do prazer, da vida sexual e não está regido pelo interesse, mas pelo desejo (PAZ, 2020). O terceiro aborda a moral, o dever, princípios que regem a conduta diante da família, casta ou sociedade (PAZ, 1995). Por fim, o quarto consiste na libertação das amarras da existência (PAZ, 1995). Todos os quatro possuem sua legitimidade, todavia, em termos de valores, o prazer é superior ao trabalho, o dever ao prazer e a libertação dos demais (PAZ, 1995).

Ainda sobre o dharma, é importante notar que ele “(...) designa a tradicional ordem estabelecida, que inclui todos os deveres, sejam eles individuais, sociais ou religiosos” (ANDRADE, 2020. p.96). Na Índia há um destaque dado a vivência moral visando prevenir de três inimigos: kama (desejo), lobha (egoísmo) e krodha (raiva). Cultivam-se oito virtudes: compaixão por todos os seres vivos, paciência, contentamento, pureza, seriedade, pensamento positivo, libertação da avareza e inveja (ANDRADE, 2020). Com isso, ao passo que a lei do karma remete ao indivíduo enquanto singularidade, o dharma ressalta os deveres sociais de cada hindu (ANDRADE, 2020).

Conforme o que foi dito até aqui, pode-se afirmar que a grande finalidade a ser buscada no hinduísmo é o retorno ao Brahma, a libertação do espírito, do atman (ou de certo modo, alma.) da realidade aparente e ilusória (maya) (BOSIO, 2010). Ou seja, a libertação tanto da hierarquia social quanto da imperfeição individual (ANDRADE, 2020). O mediador deste processo é o dharma ao requisitar do indivíduo seu correto cumprimento dos deveres sociais de acordo com sua casta na hierarquia da sociedade. O que certamente é um banho de água fria sobre as classes mais baixas da sociedade. Após esta breve exposição de aspectos que caracterizam o hinduísmo, é possível agora tratar do budismo.

 

Conjuntura histórica da origem do budismo na sociedade indiana

Por volta dos séculos VI e V a.C., sessenta e duas seitas de tipo religioso veem a luz. Cada uma delas propondo uma série de formas inovadoras de lidar com a realidade mundana e isso tanto a nível pessoal quanto social. Buscando também compreender a relação entre humanos e deuses através de diversos ritos e mitos (BOSIO, 2010). E é neste contexto em que aparece o budismo; mais especificamente, por volta de 563 a.C. no que hoje corresponde ao Nepal (BOSIO, 2010). No entanto, para uma melhor explicação sobre este aparecimento de diversas seitas, é necessária a exposição da conjuntura histórica.

Entre os séculos VIII e VI a.C. começava um desenvolvimento de pequenas repúblicas, uma expansão do comércio, a aparição do ferro, a instauração de novas formas de produção econômica e um explosivo aumento da vida urbana (BOSIO, 2010). As monarquias tradicionais mantiveram sua presença nos territórios próximos à planície do rio Ganges, enquanto ao redor delas nas encostas do Himalaia se estabeleceram as nascentes repúblicas (BOSIO, 2010).

Muitas destas repúblicas, em especial à da zona norte, começaram a desenvolver um forte intercâmbio comercial com os vizinhos ocidentais, sobretudo com o Império Persa governado pela dinastia Arquemênida, além de aumentar o comércio interno (BOSIO, 2010). Em segundo lugar, a introdução, massificação do ferro veio a complementar e finalmente substituir a utilização do cobre e do bronze como matérias primas exclusivas. Graças ao uso deste novo material é que tornou possível a fabricação de ferramentas muito mais resistentes e eficientes. Situação que em larga escala redundou em um aumento produtivo e numa melhora da qualidade de vida (BOSIO, 2010).

O incremento da demanda exterior por bens de consumo, como especiarias e tecidos, ativou a economia interna indiana. Isto deu origem a verdadeiros empreendimentos de bens de consumo, além de outras intermediárias no processo de produção, encarregadas do transporte e da segurança das remessas (BOSIO, 2010). A fim de satisfazer com prontidão e excelência a demanda, foi-se necessário construir estradas, estalagens e centros de abastecimento. O que paulatinamente foi originando grandes e poderosas cidades comandadas por ricos cada vez mais orgulhosos e influentes comerciantes (BOSIO, 2010).

A forte necessidade por obter matérias primas, tanto para o desenvolvimento produtivo de bens finais de consumo, como de obras viárias e construção de cidades ocasionou o desflorestamento de boa parte da vasta selva que cobria o território septentrional do subcontinente indiano (BOSIO, 2010). Tal trabalho demandou pouco tempo graças à utilização de novos utensílios cortantes feitos de metal, mas sem que a natureza pudesse recuperar suas próprias forças (BOSIO, 2010).  

Esta drástica mudança ecológica privou uma importante quantidade de grupos sociais do único habitat que conheciam. Neste contexto, o amparo e isolamento fornecido pela selva haviam desenvolvido durante séculos as formas sociais, práticas e costumes de muitos indivíduos, famílias e povos que agora se viam obrigados a receber os forasteiros ou até mesmo emigrar até os centros urbanos de recente aparição (BOSIO, 2010).

Estas mudanças sociais aqui explicadas exigiram dos brâmanes uma necessidade de repensar suas práticas e, ao mesmo tempo, propiciaram o surgimento de diversas seitas (BOSIO, 2010). É aqui perceptível como o desenvolvimento das forças produtivas e do processo de urbanização requisitou, no plano ideológico, alguma explicação sobre o lugar do indivíduo no cosmos e nesta sociedade. Trata-se agora de refletir sobre a práxis humana numa sociedade que está num iminente progresso em termos de capacidade produtiva e comercial. Tem-se com isto um intenso desenvolvimento das individualidades, algo que o budismo buscou explorar.

 

O budismo diante da sociedade indiana em progresso

O budismo veio a realizar uma revolução na cultura bramânica. O desafio era o de romper com o monopólio cultural da classe sacerdotal bramânica, a qual era a única autorizada a interpretar e difundir a palavra sagrada (BOSIO, 2010). O discurso budista não tinha nenhum preceito alusivo à divisão de classes; algo que já era diferente para os brâmanes que partiam do princípio de que o ordenamento social é primordial, ancestral e divino (BOSIO, 2010).

Neste contexto de intenso desenvolvimento comercial e das cidades começa a aparecer também reclamações da parte dos prósperos comerciantes que ganhavam força visando maior participação nas questões políticas (BOSIO, 2010). Algo que tradicionalmente esteve apenas disponível para os guerreiros ou cavaleiros. Pouco a pouco se foi criando também uma insatisfação com o monopólio brâmane dos textos védicos (BOSIO, 2010).

A classe sudra ou dos servos não tinha direito de conhecer e nem recitar os textos sagrados do bramanismo, algo que mudou com o budismo. Visto que a doutrina budista não reconhecia como limitação a posição de classe no que tange a participação na comunidade (BOSIO, 2010). Buda viria a usar a linguagem vulgar, comum, para transmitir seus ensinamentos, ao contrário da classe sacerdotal brâmane que privilegiava o uso do complexo idioma sânscrito (BOSIO, 2010). A mensagem de Buda se fazia mais sensível de assimilar por parte da sociedade, em especial, das classes mais baixas (BOSIO, 2010).

De modo geral o budismo abriu a oportunidade para aqueles que antes eram ignorados pelo sistema bramânico (BOSIO, 2010). Com relação a isto, Durant (1995, p.293) comenta que “(...) Buda não perdoa aos sacerdotes do seu tempo; despreza-lhes a admissão de serem os Vedas inspirados pelos deuses, e escandaliza a orgulhosa casta bramânica aceitando em sua ordem membros de qualquer casta”. Além disto, Buda manifestava seu repúdio para com o sacrifício aos deuses que custava a vida de inúmeros animais, rejeitava o culto de entidades sobrenaturais ou qualquer ascetismo (DURANT, 1995).

Trata-se de uma postura que de encontro do sacerdócio, demonstrando um caminho de libertação possível para fiéis e infiéis.  (DURANT, 1995). O budismo é, assim, uma religião proselitista, universalista e não mais nacionalista como o hinduísmo. Esta postura mais aberta do budismo caiu como uma luva para as demandas materiais e espirituais das classes mais baixas, dando-lhes agora o devido consolo. O universalismo e proselitismo surgem neste contexto já explicado de maior intensidade das trocas comerciais e desenvolvimento urbano. Melhor ambiente para pregar a todos indistintamente? Impossível!

 

Budismo e desenvolvimento espiritual

Para iniciar esta investigação acerca dos postulados budistas envolvendo a relação do indivíduo com sua espiritualidade, é preciso antes explicar alguns conceitos fundamentais. Buda, segundo Watts (1999), foi o primeiro psicólogo da história, descobrindo a doutrina, denominada por ele de o meio caminho, afirmando que a pessoa que foge da dor é uma pessoa que teme a dor, e coloca o caminho cético e o hedonismo como não solucionável para tal assunto.

Segundo Watts, a doutrina o meio caminho, é resumida em quatro nobres verdades, são elas: Dukkha, a nobre verdade da dor: nascimento é dor; doença, tristeza, lamentação, mágoa, velhice e desespero são dores. Trishna, a nobre verdade sobre a causa da dor: o desejo. Nirvana, nobre verdade da cessação da dor: supressão completa do desejo, desinteresse e desapego. Por fim, Marga, a nobre verdade sobre o caminho que leva à cessação da dor: intenção justa, falar justo, atenção justa, viver justo e concentração justa (DURANT, 1995). Esta última nobre verdade é composta por oito métodos ou práticas e estão subdivididos em três fases (WATTS, 1999).

A primeira fase desse caminho óctuplo das quatro nobres verdades é composta de três elementos, são eles: a visão correta, a decisão correta e a fala correta. Para o budismo, tudo o que existe no universo é interdependente. A segunda fase se liga a ação e inclui mais três caminhos, são eles: o caminho da ação concreta, o modo de vida correto e o esforço correto. Portanto, a ideia da ética para o budismo se baseia em oportunidade (WATTS, 1999). Por fim, a última fase do caminho óctuplo trata das mentes e dos estados da consciência e está relacionada com a meditação e vai incluir os dois últimos aspectos do caminho, são eles: samyak smriti e samyak samadhi. A palavra smriti significa recordar. Já samyak samadhi quer dizer consciência integrada, afirmando a não existência de distinção entre sujeito e objeto/conhecedor e conhecido. O estado de samadhi se alcança mediante meditação (WATTS, 1999).

Sendo assim, percebe-se que o meio caminho carrega em segredo que não podemos apenas nos salvar, pois somos interligados, somos um universo inteiro e para sentir esta interligação é necessário penetrar no estado do nirvana e assistir a emergência do Karuna, que seria a sensação de interligação entre nós, ou seja, todos sofrem o que nós fazemos (WATTS, 1999). Liga-se a isto que a essência da ética budista reside em atuar e pensar em função dos demais, de suas necessidades e sofrimentos (MONTAÑO, 2009). Já as ações negativas, carregam sementes de sofrimento e dor (MONTAÑO, 2009).

As cinco regras morais são também importantes para o budismo, além do conhecimento das quatro nobres verdades. A saber: não matar nenhum ser vivo, não tomar o que não for oferecido, não mentir, não beber e ser casto (DURANT, 1995).

 

Mente, emoções e imagem da realidade

São duas as emoções de onde decorrem as demais: amor e medo (MONTAÑO, 2009). A mente, na concepção budista, é criadora do mundo que experimentamos (MONTAÑO, 2009). Ela abarca emoções, sentimentos e sensações (MONTAÑO, 2009). Toda experiência que se vive, seja agradável, desagradável ou neutra, é fruto do modo como reage a mente aos estímulos internos e externos (MONTAÑO, 2009).

Ainda sobre as experiências, nelas se tem que a raiz fundamental de toda dor e sofrimento é a ignorância (MONTAÑO, 2009). Ignorância aqui significa ver de modo equivocado os fenômenos e as experiências vividas devido às respostas imediatas dadas pelas emoções e pensamentos aos estímulos do mundo (MONTAÑO, 2009). Tem-se aqui então uma crítica da vida cotidiana, a qual passa uma imagem estática da realidade por conta de sua imediaticidade (MONTAÑO. 2009). Com relação a tal imagem estática, é importante levar em conta que “(...) o mais perigoso aspecto da ignorância — o verdadeiro pecado original — é aquele que nos faz acreditar que "nós mesmos" somos verdadeiramente isto ou aquilo, e que podemos sobreviver numa espécie de identidade, de um instante ao instante seguinte, de um dia a outro, de uma vida a outra(COOMARASWAMY, 1965, p.34). Contra esta visão estática da realidade o budismo afirma que tudo é devir (MONTAÑO, 2009).

Ademais, as perturbações mentais e as aflições emocionais surgem quando se vê o mundo a partir da perspectiva do Ego e do Eu (MONTAÑO, 2009). Uma mente que se imiscui a impulsionar e defender os desejos do Ego é uma mente escravizada ao campo de seus interesses (MONTAÑO, 2009). Será por meio da meditação que se alcançará um domínio dos processos mentais e até mesmo a libertação (CONZE, 1997).

 

Negação da individualidade?

A partir do que foi dito até aqui, pode-se aferir que vida é sofrimento (CONZE, 1997). A crença num “Eu” é condição indispensável para que surja o sofrimento (CONZE, 1997). Este mundo imbuído de sofrimento e incessante devir deve ser rechaçado visando o nirvana (CONZE, 1997).

Buda tomou como certos a lei do karma e o círculo de reencarnações hinduísta. Mas seu pensamento caminhava no sentido de buscar um modo de escapar deste círculo, realizar o Nirvana na terra e depois a aniquilação (DURANT, 1995). O nirvana é efeito da extinção do desejo individual, egoísta ou aniquilação moral do Ego (DURANT, 1995). Todavia a grande recompensa está em não renascer, ao quebrar o ciclo de reencarnações (DURANT, 1995). A finalidade aqui é a de alcançar a imortalidade (CONZE, 1997). A imortalidade não é um desejo de perpetuar uma individualidade que se compra ao preço da decadência inevitável, mas sim uma transcendência desta individualidade (CONZE, 1997).

Diante disso, tem-se aqui posto um horizonte abstraído de toda a práxis social, um “além”. O despertar obtido com nirvana é desprovido de si, de individualidade e vida. Outro ponto fundamental, contraditoriamente, é que este despertar, esta salvação ou libertação, só pode ser conseguida por parte do indivíduo a partir dele mesmo (COOMARASWAMY, 1965). No entanto, como já foi dito antes, a moral budista possui uma preocupação com a comunidade: deve-se atuar em prol dos demais. Trata-se de uma mediação necessária para o pleno desenvolvimento espiritual do indivíduo.

   Se antes o hinduísmo embasava ideologicamente a rígida sociedade dividida em castas a partir da noção de reencarnação; o budismo o faz indiretamente partindo da ideia de que vida é sofrimento, o eterno devir reencarnatório do mundo precisa ser quebrado e para isso o indivíduo deve ser capaz de atingir um estado para além desta realidade marcada pelo Ego.

Dessa maneira, a saída é espiritualmente individualizada. Nega-se a individualidade marcada e recém desenvolvida pelo contínuo fluxo das trocas comerciais, urbanização, do desejo de enriquecer, em prol de uma individualidade agora espiritualmente liberta do ciclo de renascimentos, da inconstância de um mundo em desenvolvimento das forças produtivas e do desejo egoísta. Pode-se afirmar, então, que há sim uma negação da individualidade, mas é de uma individualidade marcada pela supressão do ser genérico do ser humano em busca do que se pode obter por meio do dinheiro. É um completo desprendimento para com a generidade em-si alienada, esta última não medeia o caminho em direção à generidade humana para-si ou consciente.

Para as classes dominadas esses ensinamentos lhes fornecem o consolo necessário para sua situação de subjugação, mas longe de fazê-las rebelar-se contra a ordem social vigente. Pelo contrário, tenta-se resolver os problemas advindos das alienações postas pela práxis humana, espiritualmente.

 

Conclusão

Considerando toda a reflexão realizada no presente texto, pode-se dizer que no budismo ocorre a negação da individualidade marcada pelas alienações de um contexto histórico marcado pelas incessantes trocas comerciais, desenvolvimento das cidades, desmatamento e desenvolvimento das forças produtivas em prol de uma individualidade que melhor exprima a generidade humana.

O budismo na presente abordagem é tratado como uma seita. A doutrina de Buda cumpriu importante papel ideológico em sua época, rompendo com o monopólio espiritual brâmane, adotando uma postura proselitista e refletindo sobre os problemas cotidianos existentes.

Por fim, por uma questão de precisão, por “ideologia” se entende uma imagem de mundo capaz de orientar a práxis humana, podendo dirimir conflitos sociais como entre classes (LUKÁCS, 2018). No caso do budismo, sua transformação em uma ideologia se deu a partir do momento em que as profundas transformações sociais não eram mais já explicadas satisfatoriamente pelo bramanismo, havendo insatisfação dos prósperos comerciantes buscando mais reconhecimento e também a falta de atenção para com as classes mais baixas. Exigindo assim uma imagem de mundo capaz de explicar o cotidiano social que passava por mudanças. Já a “alienação” refere-se a um obstáculo ao devir humano do ser humano posto por sua própria práxis (LUKÁCS, 2018).

 

Referências

ANDRADE, J. Teoria do karma, sistema das castas e conceito da reencarnação e seu impacto na sociedade indiana: uma leitura antropo-filosófica. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v.2, n.4, p.85-98, jul./dez. 2020.

____________. Índia, lar dos deuses e terra das multidões: uma aproximação às religiões indianas. Curitiba: Intersaberes, 2019.

BOSIO, Francisco Ocaranza. El nascimiento del budismo em el mundo Índio antiguo analizado desde una perspectiva histórico-social. Revista Académica de la Universidad Bernardo O´Higgins, a.7, n.7, p.133-142, Ago. 2010.

COOMARASWAMY, A. O pensamento vivo de Buda. São Paulo: Martins, 1965.

CONZE, E. El budismo: su esencia y su desarrollo. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.

DURANT, W. Nossa herança Oriental. Ed. 4. Rio de Janeiro: Record, 1995.

LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.

MONTAÑO, Jorge García. Budismo y ética: ¿Qué hacemos con nuestros sentimientos? En-claves del Pensamiento, a.III, n.5, p.101-113, Jun.2009.

PAZ, O. Vislumbres da Índia: um diálogo com a condição humana. São Paulo: Mandarim, 1995.

WATTS, A. Budismo. La religión de la no-religión. Barcelona: Editorial Kairós, 1999.

13 comentários:

  1. Boa tarde! Excelente artigo! Lendo-o, não deixa de ser tentador relacionar a trajetória do vínculo entre religião e ideologia no Nepal e em outras regiões da Ásia que passaram por transformação parecida e o que ocorreu na Europa com relação ao cristianismo.

    Em ambos casos, a adoção de um sistema de crenças que pregasse a igualdade acabou servindo como forma de justificar uma transformação nas relações entre as pessoas e, portanto, foi apoiada por classes ascendentes (além do evidente apoio das camadas populares). Ao contrário do budismo, o cristianismo já era uma instituição religiosa muito antes das relações de comércio generalizarem - o que prova que o mais importante é a ênfase do discurso e não a doutrina que serviu de base para tal.

    Minha pergunta aos autores é a seguinte: serve tal paralelo como comprovação da aplicação do pensamento marxiano a esse contexto? Se serve, o que dizer do modelo de dominação precedente, em que aparentemente a principal classe dominante não era aquela que detinha os maiores recursos econômicos?

    Obs.: na última frase, quando digo "precedente" falo em relação ao período anterior à consolidação do budismo.

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    1. Boa tarde! Fico feliz que tenha gostado do texto. Bom, sobre seu comentário, é preciso notar que o cristianismo já era bem operante quando se tornou religião oficial do império romano. Num contexto de extrema crise social.

      Em nosso texto tenhamos fazer uma análise materialista do budismo. Então sim, poderíamos dizer que serve como comprovação.

      Sobre a segunda pergunta, é preciso notar que a existência de uma nobreza, de uma divisão entre trabalho manual e intelectual já demonstra que havia um grupo que dominava outros pelo monopólio da religião e sua função social. Obviamente que não havia como no Ocidente a existência de propriedade privada, mas isso não significa inexistência de classes sociais.

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    2. Ótima resposta! Eu também tendo a pensar assim. No caso da Índia (ou do Nepal) da época, você não acha que daria pra dizer que a dominação econômica continua do mesmo jeito vinculada à dominação política (sacerdotal), mas não necessariamente quem exerce a função política (sacerdotes brahmanes) seria quem exerce a dominação econômica? Até onde eu entendo é exatamente que o Estado burguês foi concebido.

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    3. Opa. Concordo. Acho que é por aí sim. Só teria que investigar a coisa mais a fundo pra saber como tem sido lá. Mas sem dúvida que com a criação do mercado mundial e a completa universalização do capital a Índia tornou-se também capitalista.

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  2. Arthur e Yasmim, ótimo texto, parabéns! =)
    Contudo, me pergunto o seguinte: se a anulação da individualidade é o motor da busca nirvânica budista, no que ou onde se dissolve a consciência do indivíduo? De outra forma, pq ele busca individualmente deixar de ser indivíduo, se por analogia, ele já está integrado em um todo, que é o coletivo, e isso justamente o faz sofrer? É uma provocação, pois imagino [e apenas imagino, rs] que a dissolução da consciência não poderia proporcionar uma experiência de consciência realizada, ou seja; alguém que chegou no nirvana não poderia voltar, ou não voltaria por não existir mais enquanto si mesmo. grande abraço!!! André Bueno =)

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    1. Olá, professor!!
      A negação da individualidade por parte do budismo procede no seguinte sentido: Busca-se negar a individualidade marcada pelo Ego, pelo Eu ou egoísmo. Em contrapartida, o budismo busca afirmar uma individualidade preocupada com a coletividade (conforme demonstra Watts que citamos no texto). Então não se trata de uma supressão daquela individualidade humanamente plena, mas sim de uma individualidade alienada que representa um obstáculo ao devir humano do ser humano.
      Grande abraço!!!

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  3. A mente, na concepção budista, é onde vivenciamos as emoções certo? Pra se libertar das emoções da mente, a meditação seria a única saída pra esse equilibrio interno? Tipo, pra acalmar a turbulência emocional causada pela mente, a meditação é a resposta da calmaria?

    Suelen Bonete de Carvalho

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  4. Suelen Bonete de Carvalho5 de outubro de 2021 às 18:27

    A mente, na concepção budista, é onde vivenciamos as emoções certo? Pra se libertar das emoções da mente, a meditação seria a única saída pra esse equilibrio interno? Tipo, pra acalmar a turbulência emocional causada pela mente, a meditação é a resposta da calmaria?

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    1. Olá, Suelen. Agradecemos a pergunta!Sim, a mente (é nela também onde vivenciamos emoções) seria o meio pelo qual se poderia esvaziar a mente de tudo aquilo que advém do Ego, do Eu. Ela propiciaria esse equilíbrio interno que você mencionou e também uma relação harmônica com o exterior.

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    2. Obrigada pela resposta!!!
      Adorei o teu texto!

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  5. Parabenizo os autores, Arthur D´Elia dos Santos e Yasmin Ribeiro de Carvalho, pelo belíssimo artigo intitulado “a individualidade na moral budista’’, que fala que o sistema de castas indiano remonta a mais ou menos 800 a.C (ANDRADE, 2020). Ainda sobre esta forma de organização no ceio da sociedade: “As castas são, antes de tudo, realidades sociais: famílias, língua, ofício, profissão, território. São uma ideologia: uma religião, uma mitologia, uma ética, um sistema de parentesco e uma dietética. São um fenômeno: não é explicável a não ser dentro e a partir da visão hindu do mundo e dos homens” (PAZ, 1995, p.58). Neste sentido, as castas representam uma organização social e religiosa hierárquicas. Assina Francielcio Silva da Costa.

    Como a individualidade esta presente na moral budista?


    Como o budismo realizou uma transformação na cultura bramânica?

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    1. Olá, Francielcio!
      Agradecemos as perguntas!
      Quanto a individualidade na moral budista, esta vai buscar trabalhar a individualidade em prol do coletivo, negando qualquer individualidade alienante.
      Quanto a transformação na cultura bramânica, o budismo rompe com o monopolio Brâmane e traz a possibilidade de todas as classes sociais se realizarem espiritualmente, tendo um caráter universalista.

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