Maria Gabriela Moreira

 “JOHN RABE”: REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DO MASSACRE DE NANQUIM


Introdução

Percebe-se, hoje, um interesse crescente na cultura de países como China, Japão e Coreia do Sul. Essa última, desde o final dos anos 2000, vem atraindo olhares por conta da indústria da música pop coreana (K-pop) - parte do fenômeno maior da Korean Wave (Hallyu) -, esse gênero musical se tornou um embaixador cultural do país, ocasionando um sucesso internacional sem precedentes. Além da música, cogita-se o impacto das produções televisivas e cinematográficas desses países que chegam, cada vez em maior número, ao ocidente. Graças a plataformas de streaming como a Netflix e a própria Internet que permite um acesso fácil a essas produções, o contato com a cultura desses países por pessoas não nativas, especialmente geograficamente distantes, intensifica-se.

A exótica imagem oriental é o resultado do "outro" na visão ocidental (antes de tudo na Europa). Nesta visão, através da relação dialética, cria-se a singularidade dos dois polos. O que quero demonstrar com isso é que jovens, principalmente em período escolar, estão sendo bombardeados por essa expansão cultural – uma mercantilização - da China, Japão e Coreia do Sul, mas o que de fatos eles conhecem sobre a população e a história desses países? Muito pouco ou nada se estuda sobre eles na escola, constata-se uma presença tímida dos temas de história asiática no material didático, deixando-os com uma noção extremamente limitada dessas nações, o que pode gerar preconceitos e discursos equivocados.

Em razão do exposto, e entre outras causas, a proposta deste artigo vem ao encontro de somar a grade escolar, pensando as histórias asiáticas - julgo necessário o termo, visto a ampla diferença numérica de civilizações ali remanescentes - e como essa pode ser trabalhada em sala dentro de temáticas já visitadas. Ciente de que trabalhar a história desse modo, numa perspectiva episódica, pode contribuir para uma visão exclusiva e hierárquica da história, servindo ao eurocentrismo presente na historiografia brasileira, busco pensar a temática, não partindo do ocidente para pensar o oriente, mas sim do contexto global, neste caso a Segunda Guerra Mundial. Apresenta-se aqui o cenário histórico a ser analisado e também uma sugestão de como o filme “John Rabe” poderá ser trabalhado em aula.

 

A Segunda Guerra Mundial e o conflito sino-japonês

A historiografia oficial que temos contato marca o início da Segunda Guerra Mundial com a invasão da Polônia pelos alemães no dia 1 de setembro de 1939. Quanto ao confronto generalizado, foi depois de Pearl Harbor, em 1941, que a guerra sino-japonesa se fundiu no cenário mundial, neste mesmo ano a declaração oficial da guerra entre a República da China e o Japão imperial se concretizou. Verifica-se, contudo, que operações de grande porte tiveram início em 1937 entre estes dois países da Ásia.

Jean-Louis Margolin [2015] vê duas razões para este quase esquecimento pelo ocidente desta parte do conflito desde 1945, apontando como primeiro motivo o fato de ter permanecido como uma guerra “sem data e sem nome”, tornando mais difícil gerar compaixão pela mesma. O segundo fator é, segundo o historiador mencionado, a inexistência de um acordo sobre o número de vítimas e a natureza do comportamento cruel.

No que concerne ao primeiro ponto, a rendição do Japão na guerra marca o fim do embate sino-japonês, porém seu início é controverso. De fato, operou-se ações colossais no que data pós 1937, mas no Japão muitos declaram uma “Guerra de Quinze anos”, começando com a invasão da Manchúria chinesa pelos japoneses em setembro de 1931, porém seria viável retroceder até 1928 com a abertura da movimentação do exército japonês. Quanto ao nome desta guerra, além da menção feita, “Guerra da Grande Ásia Oriental” foi usado pelo governo imperial, enquanto os americanos chamaram de “Guerra do Pacífico”, os chineses de “Guerra de Resistencia à Agressão Japonesa” e muitos historiadores preferem falar de uma “Guerra da Ásia-Pacífico” desde os anos de 1980 [MARGOLIN, 2015].

Em contrapartida ao Memorial de Nanquim que traz a cifra de 300 mil mortos, alguns, no Japão, reduziram o problema a um grande golpe e alguns milhares de vítimas. O Massacre de Nanquim reflete vividamente a discordância entre Japão e China no número de vítimas, desavença já expressa por Margolin, pois se por um lado temos o revisionismo japonês, de outro vemos a influência do maximalismo chinês, ambos dificultam a busca pela verdade, logo, a segunda razão explicitada pelo historiador para o esquecimento desse conflito pelo ocidente.

Sobre esta guerra, o estopim para o seu início em julho de 1937 foi um pequeno incidente no subúrbio de Pequim. Nos grandes eixos de comunicação, dos quais os soldados japoneses tinham controle, criou-se imensas zonas de guerrilha, comunistas ou nacionalistas, que fugiam ao controle dos japoneses. Os primeiros meses de confronto, marcados pelos piores acontecimentos, correspondem a um grande otimismo nipônico quanto a uma saída rápida e vitoriosa. Os massacres foram impulsionados por um sentimento de onipotência, tratava-se de aterrorizar a China para ela capitular mais depressa e quebrar qualquer possibilidade de resistência.

Wenfan Chen, ao estudar as questões histórias nas relações sino-japonesas, verifica que obstáculos persistentes entre a China e o Japão se justificam na reconciliação incompleta entre o Japão e a China durante a Segunda Guerra Mundial, dado o período de invasão japonesa na China de 1937 a 1945. Teorias de relações internacionais falham em explicar completamente por que a história e a memória continuam a influenciar as relações sino-japonesas tão fortemente. Simbolizado pelo Massacre de Nanquim, a questão histórica ou as atrocidades do tempo de guerra japonesas e o fracasso contínuo do Japão em desculpar-se continuam a impactar as relações sino-japonesas [CHEN, 2013].

 

O Massacre de Nanquim: uma perspectiva cinematográfica

Julga-se significativo para este escrito expor, inicialmente, a ficha técnica do filme, além de outros elementos que compuseram seu entorno. John Rabe [2009] é uma produção biográfica germânica-sino-francesa do diretor e roteirista alemão Florian Gallenberger [1972]. Enquanto um filme biográfico, baseado nos diários de John Heinrich Detlef Rabe, abrange a história de vida deste, apresentando os anos considerados historicamente significativos, logo acompanhamos a trajetória de um homem alemão, membro do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que salvou a vida de mais de milhares de chineses em um dos eventos mais violentos da Segunda Guerra Mundial, o Estupro ou Massacre de Nanquim em 1937.

Sob a luz da dramaticidade do cinema, os horrores do Massacre de Nanquim cometidos pelos japoneses na guerra são narrados no filme. Após seu lançamento, a produção cinematográfica não recebeu distribuição nos cinemas do Japão e foi contestado ferozmente por ultranacionalistas japoneses que negaram a ocorrência dos incidentes. Conforme evidenciado pela sua não-recepção, os discursos de perpetração e vitimização são consideravelmente diferentes dependendo do público e de sua memória coletiva.

O Massacre de Nanquim não adentrou as mentes humanas ao redor do globo na mesma amplitude e impacto que o holocausto ou Hiroshima, nem perto disso. John Rabe não ganhou a fama de Oskar Schindler, e, apesar da publicação de seus diários por Erwin Wickert em 1997 e a publicação de Iris Chang, “O Estupro de Nanquim: O Holocausto Esquecido da Segunda Guerra Mundial”, neste mesmo ano, no qual Chang compartilhou sua descoberta dos diários de Rabe, ele permaneceu praticamente desconhecido fora da China.

Seria interessante discutir com os alunos se já assistiram a filmes que retratam a Segunda Guerra Mundial, quais seriam esses filmes e quais lembranças teriam deles. Questiona-los também sobre produções como “A lista de Schindler” ou “O menino do pijama listrado”, obras cinematográficas que caminham no sentido próximo do filme de John Rabe, de dramatização de atrocidades históricas e apresentação de um “salvador”. O cinema - o filme - serve como instrumento de perpetuação de memória, bem como um museu ou uma pintura – de exemplo temos a Guernica de Pablo Picasso -, as imagens possuem forte apelo ao espectador.

Voltando ao filme, esse tem início com a partida de John, ele está se preparando para deixar a China e entregar seu cargo na Siemns, uma empresa de telefonia, após vinte e sete anos morando no país com sua esposa, Dora. Falemos primeiramente da construção do personagem de Rabe, ele é o “bom nazista”, Gallenberger partiu de uma leitura mais simpática e positiva de Rabe como um homem bom, ingênuo e mal informado sobre o Partido Nazista ao qual aderiu, mas que usa do seu status nazista-alemão para salvar vidas inocentes.

O antagonista de Rabe, mesmo sem ter importância para história e aparecendo por poucos minutos no início, o típico nazista dogmático e cheio de cicatrizes, é colocado para contrastar com o “nosso herói”. O pacto da Alemanha com o Japão e o fato de Rabe morar há tanto tempo na China o torna perfeito para assumir o cargo de presidente da zona de segurança em Nanquim. Os estrangeiros, ali na capital chinesa, decidem por estruturar essa zona quando começam a presenciar os horrores da guerra. Historicamente, foi criado o Comitê Internacional de Segurança de Nanquim para estabelecer essa zona a fim de proteger os refugiados.

Os responsáveis pela zona de segurança vão discutir incansavelmente sobre a construção dela para os civis chineses, principalmente mulheres e crianças, trajetória que não foi fácil, estabelecer uma zona de segurança demandou imenso esforço. O filme retrata a dificuldade da aceitação da criação da zona pelos japoneses e depois as várias vezes que tentaram cancelá-la. Entretanto, vamos nos ater aqui a poucas cenas, pois o tempo de um filme é muito longo para uma aula e, além disso, precisa-se cercar quais debates serão feitos, pois não cabe em apenas uma aula a diversidades de discursões que nos sugere o filme. Opta-se, portanto, por explorar a narração fotográfica de determinados episódios da obra investigada.

A primeira dessas cenas é logo no primeiro ataque dos japoneses, quando ocorre um bombardeamento da cidade, assistimos a algumas dezenas de chineses correndo para debaixo de uma bandeira nazista enorme, expressando sucintamente o impulso temático geral do filme. Sob a personalidade de um empresário nazista, revela-se uma vontade de proteger os fracos da barbárie desumana. É uma ironia histórica que transforma o símbolo do genocídio em um dispositivo de resgate. O Japão foi o primeiro país a recorrer em tão grande escala aos bombardeios aéreos sobre cidades para aterrorizar civis [MARGOLIN, 2015]. Os “massacres de batalhas”, como pode ser chamado a violência do Japão, são bem marcados durante o filme todo.

Outra cena notável é quando, ainda antes da batalha, no acampamento, o alto escalão do exército nipônico discuti estratégias para o ataque, um dos generais diz ao outro que assim como numa caça a um elefante você não o cerca “ou você mata ou você mata”, fazendo referência aos chineses, e esse é só o começo das cenas de horrores protagonizadas por soldados do Japão. Em outra, os prisioneiros chineses, todos enfileirados, são mortos um por um por soldados japoneses num caminhão, enquanto o automóvel se desloca, os corpos caem ao chão. O massacre é constantemente reforçado pela pilha de corpos chineses mostrado ao longo do filme, seja com soldados japoneses tirando foto em frente à corpos decapitados, enquanto as cabeças estão enfileiradas lado a lado, ou, corpos mortos pela batalha que foram se acumulando na cidade de Nanquim.

No interior da zona de segurança estava a Universidade de Nanquim, o Hospital Universitário de Nanquim, a Escola Universitária para Mulheres de Ginling, a Embaixada dos EUA e uma série de edifícios do governo chinês. No filme, retratam um colégio para meninas, onde em uma das cenas três jovens mulheres chinesas estão sentadas em cadeiras tendo seus cabelos cortados numa sala em que outras jovens esperam pelo mesmo fim. No diálogo, a supervisora do colégio pede que umas delas “não chore” quando nota que ela está visivelmente emotiva. Esta é uma medida preventiva contra o estupro, torna-las um pouco menos “femininas”.

Svetlana Aleksiévitch ao recolher testemunhos de mulheres que lutaram pela URSS na Segunda Guerra Mundial, traz a história “da alma”, assim apresenta ao se denominar ser uma historiadora da alma, tornando a guerra muito mais sensível, permitindo a ela um espaço sentimental que apenas as mulheres são capazes de colocar, pois estas não contam a “história da Vitória”. Nos testemunhos que compõem o livro da escritora mencionada, há passagens que transmitem esse lado da guerra, como quando um marido ordena a sua mulher que relate a guerra como ele a tinha ensinado, “sem chorar e sem essas ninharias de mulher; que queria ser bonita, que chorou quando cortaram a trança” [ALEKSIÉVTCH, 2016, p. 22].

Habitualmente, faz-se leituras “frias” e sistemáticas da guerra, lendo-se sobre acordos, conquistas, número de baixas, esquecendo desta multiplicidade da realidade histórica. A cena das jovens tendo seus cabelos cortados ou quando são obrigadas a ficarem nuas em frente a um soldado japonês que faz a inspeção em busca de um fugitivo, essas e outras cenas do filme remetem a essa guerra narrada por Aleksiévtch, de uma perspectiva mais humana, ainda que brutal, dos processos e eventos nos conflitos armados.

É mencionado, diversas vezes, pelos agentes nipônicos do filme, a superioridade japonesa e de mostra-la através da guerra. Margolin [2015] entende que os qualitativos para definir as violências japonesas não são evidentes, seria militarismo, fascismo, colonialismo, imperialismo ou racismo? Concorda-se, até mesmo na China, sobre a ausência de uma política plenamente genocida. A forte marca do segundo quarto do século XX, do culto ao Estado e ao chefe, com o ultranacionalismo em alta, encontra no Japão o pan-asiatismo, pervertido numa visão de uma Ásia que tem Tóquio como centro, seu imperador como senhor e seu exército como escudo, aqueles “que não aceitavam serem “libertados” da dominação ocidental eram acusados de traição à sua própria identidade, daí a severidade extrema com eles” [MARGOLIN, 2015, p. 58].

No caso chinês, o ódio era porque estes se recusavam a aceitar que o Japão fosse o filho pródigo da Ásia, legitimado a dirigi-los e reeduca-los. Acontece que o Japão foi o único a sofrer com o fogo nuclear, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945 as bombas foram lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, uma decisão eminentemente política dos líderes americanos que sublinhou o fim da Segunda Guerra Mundial [GONÇALVES, 2000]. Essa peripécia levou muitos do país a se considerarem, antes de tudo, vítimas, essa foi a memória escolhida, em vez de se lembrarem também como agressores durante a guerra.

Os nuances das “verdades históricas” ficam bem evidente pelo Massacre de Nanquim. Os processos de memória, trauma e reparação ainda estão em curso em relação a esse momento histórico para as nações envolvidas. O conceito de passado sensível, marcado por violência traumática, destaca-se. É necessário existir o diálogo sobre estes lados da história, tanto as histórias asiáticas, quando os temas mais sensíveis.

 

Considerações finais

As possibilidades de estudo e análise acerca da representação exposta acima não se anulam neste artigo, outros olhares, perspectivas e visões podem ser trabalhadas. Propomos assim que a finalidade de se trabalhar com imagens, sejam fílmicas ou não, em uma aula de História, não possuem apenas um olhar e uma interpretação, há toda uma junção de sinais e narrativas a serem decodificados. Vale ressaltar, por fim que:

 

“Trazer filmes, textos ficcionais e outros produtos artísticos para a cena da Pesquisa e do Ensino de história, portanto, é fazê-los dialogarem com o trabalho dos historiadores, ao invés de os tratar como parceiros menores e ignorantes, a serem corrigidos pela ciência. E descobrir que muitas são as vozes com direito à fala reflexiva [no plano do conceito ou no plano do sensível] sobre história. Uma delas é a voz dos filmes.” [SILVA, 2009, p.156]

 

Referências

Maria Gabriela Moreira, graduada de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Maringá [UEM]. E-mail:mariagabrielamoreira15@gmail.com

 

John Rabe. Direção de Florian Gallenberger. Alemanha: Majestic Filmproduction, 2009. [134 min.], son., color. Legendado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1pmZBBCrvyk&t=2021s. Acesso em: 1 abr. 2021. [internet]

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. [livro]

CHEN, Wenfan. The History Question in Sino-Japanese Relations. 2013. 71 f. Tese - Williamsburg: College of William and Mary. Disponível em: https://scholarworks.wm.edu/honorstheses/609 Acesso em: 10 abr. 2021. [internet]

GONÇALVES, Willians da Silva. A segunda guerra mundial. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et. All. O Século XX. V.3: O tempo das dúvidas: Do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. [livro]

MARGOLIN, Jean-Louis. A guerra sino-japonesa. In: Emmanuel Hecht e Pierre Servent [orgs.] O século de sangue: 1914 – 2014 – as vinte guerras que mudaram o mundo. São Paulo: Contexto, 2015. [livro]

SILVA, Marcos. História, filmes e ensino: desavir-se, reaver-se. In: Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson [orgs.] Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. da UNESP, 2009. [livro]

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