Gustavo Souza de Deus

 ALBERTO FRANCO NOGUEIRA E A DEMOCRACIA JAPONESA


O sociólogo português Manuel de Lucena, em texto biográfico sobre Alberto Franco Nogueira, último Ministro dos Negócios Estrangeiros de António Salazar, alude a uma guinada do personagem à extrema-direita, quando da transição do controle do Estado Novo para Marcelo Caetano. O autor escreve que:

 

“[E]m política interna, [Franco Nogueira] advogou o reforço da luta ideológica e da ordem pública, adoptando, em face do ensaio marcelista de “renovação na continuidade”, uma atitude de permanente alerta e freqüente censura – frontal ou velada – muito temerosa dos passos renovadores. Assim, foi caindo nas boas graças de sectores de direita e de extrema-direita – aos quais não pertencia e que se tinham mostrado hostis à sua entrada para o governo – acabando por ser considerado, com alguma justiça, um dos maiores expoentes da ala conservadora do regime.” [Lucena, 2015, p. 139]


Contudo, a publicação recente do diário do Ministro, escrito enquanto ainda um delegado do serviço exterior, contém possíveis evidências de que suas predileções estariam neste espectro bem antes de sua participação na política nacional. Por um lado, sua narrativa sobre a história japonesa se aproxima do que se poderia considerar um elogio ao regime fascista que guiara o país durante a Segunda Guerra Mundial. De outro, é marcante o modo como o autor deprecia a experiência liberal dos japoneses, ao destacar matérias jornalísticas que lhe comprovariam os contornos jocosos da autodeterminação popular.

 Em 1946, ainda recém-empossado no serviço público, Franco Nogueira foi designado para um posto em Tóquio. Poucas semanas após desembarcar, no dia 1 de fevereiro, o jovem diplomata dedicou seu tempo livre de uma sexta-feira para entender a mentalidade japonesa de antes da Segunda Guerra Mundial. Os termos com que anotara suas impressões iniciais no diário são reveladores de desapreço à corrupção dos democratas nipônicos e o que aparenta ser uma admiração pela guinada autoritária que, durante a guerra, conduziria ao regime do general Hideki Tojo:

 

“Da resma de jornais que devorei uma impressão me ficou: o japonês jogou o todo pelo todo, em pleno. Tudo foi subordinado ao propósito da vitória: considerações e interesses pessoais não existiram e os sacrifícios fizeram-se por bitola grande, logo de início. Dum liberalismo mais ou menos anódino, formal na essência e praticado apenas como decalque do Ocidente, passou-se ao autoritarismo que faz agir e pensar como um só. Dantes, partidos havia vários, democráticos ou socialistas por rótulo; as eleições tinham aspecto de liberdade, muito embora mais ainda do que na Europa a corrupção fosse de rigor; e a Dieta era o parlamento onde discutiam com cerimônia e fleuma os representantes dos antigos clãs feudais do Japão Velho.”  [Nogueira, 2019, p. 62]

 

Se ainda não era acusada por todos os crimes de lesa humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, a política externa japonesa já havia sido formalmente responsabilizada por seu extremo belicismo, desde, pelo menos, 1931, com a publicação do Lytton Report. Ainda no contexto da Liga das Nações, Tóquio recebera mal as conclusões do relatório, revelador de que seriam os nipônicos os agressores na Questão da Manchúria, e retirara-se da organização, acentuando um ciclo de isolamento e ocupação ilegal de territórios. Uma vez que estes fatos tiveram ampla evidência em ambientes diplomáticos, os comentários de Franco Nogueira sobre a expansão colonial do Japão permitem entrever uma notável complacência para com a experiência autoritária daquele país:

 

“Então principiaram os sonhos e a nação meteu-se à forja a temperar o gládio. Quando decidiu a grande aventura, não hesitou mais: preparou corpo e alma para o que desse e viesse. E fê-lo com espírito de jogador: arriscou em cheio numa carta.” [Nogueira, 2019, p. 63]

 

O elogio de Franco Nogueira à grande aventura japonesa continua, denotando que a clivagem entre regimes autoritários e liberais seria, naquele instante, mais evidente para o diplomata do que uma contraposição cultural entre Oriente e Ocidente. Sua narrativa chegaria ao ponto de representar a expansão nipônica em direção à China e aos mares do sul como uma “cruzada” para libertar a Ásia:

 

“O povo sentia o orgulho das raças patrícias e a nação ficou possessa da mística que leva à cruzada. Expandiu-se, irradiou e ficou cega pela perspectiva. Não era já apenas a ânsia dum Japão maior; foi a crença na responsabilidade de libertar a Ásia do escalracho ocidental. Para isso invadiu a China e seguiu para o Sul.”  [Nogueira, 2019, p. 64]

 

Chegariam dias em que aquela mesma mística levaria os portugueses à luta por suas colônias africanas. Por ora, cabia ao futuro Ministro do Estado Novo notar nos nipônicos um traço que viria a recomendar aos lusitanos, anos mais tarde:

 

“No material e mecânico, reuniu quanto pôde. Armou-se durante anos, e à refrega utilizou tudo duma assentada, sem guardar reservas e em luta sem quartel. Externamente, enfileirou com os que na altura pareciam futuros triunfadores: alemães e italianos. Mas foi no moral, principalmente, que se construiu mais sólida armadura. Neste particular, não deixa dúvidas a crônica da vida japonesa antes e durante a guerra, mesmo censurada como foi. No noticiário do dia-a-dia se descobre o esforço para fazer da nação um todo homogêneo e inteiriço, duma só fé.” [Nogueira, 2019, p. 63]

 

Os termos com que descreve a entrada do Japão na Segunda Guerra Mundial evidenciam que o diplomata já manifestava predileções autoritárias, antes mesmo de seu Ministério e de sua atuação parlamentar. A violência da expansão colonial nipônica ficou em segundo plano e suas anotações dedicaram-se à construção de imagens de grandeza e unidade que teriam movido o passado recente do país. Quanto à democracia, que após a guerra retornara, Franco Nogueira reservava a comparação metafórica de um trem sequestrado por passageiros na linha de Tóquio a Atami, notícia nos jornais da terça-feira, dia 18 de junho de 1946:

 

“O outro sucesso [curioso] pertence à mesma bitola democrática. Ao que refere a notícia, passou-se na linha férrea de Tóquio a Atami. Todas as manhãs, pelo cedo, corre um comboio para o sul e regressa pelo lusco-fusco. Pois bem: numa estação intermédia, quatro energúmenos invadiam a locomotiva, amarravam fogueiro e maquinista e manejavam eles próprios a aparelhagem até o comboio atingir o destino; à chegada soltavam os dois tripulantes. E na viagem de retorno voltavam a manietá-los e de novo dirigiam a máquina até à mesma estação. Durou a brincadeira uma semana e apurou-se que os quatro desaustinados nada sabiam de locomotivas e caminhos de ferro. Os dois presos nunca se queixaram; nem o público nem o pessoal ferroviário deram fé de coisa alguma de anormal; e não houve desastres ou acidentes. Quanto ao motivo invocado pelos quatro sujeitos para a proeza, era este: que a autoridade agora pertence ao povo, a este competindo mandar em tudo, na condução dos comboios inclusivamente. Estavam, portanto, no exercício pleno dos seus direitos cívicos. O Governo meteu-os na cadeia. Mas o jornal protesta e afirma que se pretende coarctar a liberdade de quatro democratas!” [Nogueira, 2019, pp. 86 e 87]

 

A passagem escolhida por Franco Nogueira demonstra uma visão oligárquica da política, caricaturando o crivo popular de modo que, como sua trajetória demonstrará, não estaria restrito ao Japão. Ao rir-se do fato de que populares não estavam preparados para conduzir comboios, o jovem diplomata também evidencia a falta de consonância entre preceitos liberais e a experiência da sociedade japonesa. Ademais, além do preparo, faltariam também o direito e a autoridade para decidir a execução prática dos princípios democráticos. De tal representação pode-se concluir que o personagem alimentava um caráter restrito e autoritário da democracia, que não deveria ser universal e participativa, mas exercida pelos capacitados em nome da ordem social; este sim, o verdadeiro interesse da população. Tanto quanto o controle dos trens estava nas mãos dos maquinistas, o poder deveria ser organizado e gerido em cada nação pelos seus mandarins.

 Neste sentido, a filosofia política de Alberto Franco Nogueira parece constituir a defesa de uma clássica imagem de despotismo oriental. Seus fins, contudo, não eram os de construir, pela contraposição, uma identidade europeia ilustrada e distante do tradicionalismo japonês, como seria o caso do orientalismo habitual. Na verdade, a trajetória do personagem permite entender que já havia profundo e íntimo apreço às formas autoritárias de governo, a partir do qual devem ser compreendidas suas alusões jocosas aos democratas de Tóquio. Entretanto, seu discurso não se qualifica por isso como um orientalismo menor. Edward Said assevera que “falar de orientalismo é falar de um arranjo complexo de idéias “orientais” (o despotismo oriental, o esplendor oriental, a crueldade, a sensualidade.)” [Said, 1996, p. 30].

 Ressalta-se, portanto, que a tendência a ver o nipônico como um povo mais afeito a regimes autoritários segue sendo, no mínimo, o reflexo de uma longa tradição de orientalismos, a despeito do objetivo conjuntural e cognoscível de Franco Nogueira. Quanto mais não fosse pela intenção manifesta de criar um discurso sobre o modus operandi da política japonesa e de determiná-la com a autoridade de um observador que domina o assunto, sê-lo-ia devido ao fato de que, como disse Said, “o orientalismo não só cria, mas igualmente mantém.” [Said, 1996, p. 41] E há passagens em abundância no diário do diplomata que fazem manutenção das definições do que pensaria o japonês, como o que escreveu no dia 6 de dezembro de 1946:

 

“O japonês tem perfeita consciência de que o Imperador é um ser humano, que nasce, dorme, come, bebe, faz a barba e espirra como o vizinho da esquina. Simplesmente, esse ser humano é um símbolo: e este é sagrado porque é o símbolo da pátria, do próprio Japão, dessa mesma nacionalidade que se mantém íntegra há dois mil anos. [...] Ele concentra a presença dos vivos e a presença dos mortos, a cadeia dos antepassados. É a tradição viva.” [Nogueira, 2019, p. 129]

 

O diplomata havia constatado, em meio aos escombros do pós-guerra, que o nipônico não tinha uma essência democrática, tipo de doutrina política natural ao mundo anglo-saxão, e que as vozes estridentes de seu novo regime eram tão desarmônicas com seu verdadeiro interesse que não causaram mais que torturas:

 

“No fundo, ajudam à confusão geral e não atiram para a arena uma idéia construtiva que auxilie a solução dos problemas imediatos. Num ponto, todavia, se congregam as facções díspares: no desejo de paz, proclamada em vozes tão estridentes que mais se diriam gritos de guerra. Entrementes, a massa anônima, a que paga o imposto e cultiva o arroz, vai padecendo com estoicismo as torturas da democracia nova: inflação que atira os preços às alturas; comércio exterior proibido; mercado negro; desorganização administrativa; corrupção; e, sobretudo, eleições de quarto em quarto de hora, visto que hoje tudo aqui se escolhe por sufrágio do povo soberano, desde o contínuo da regedoria local até ao Primeiro-Ministro. Para onde irá o Japão?” [Nogueira, 2019, p. 102]

 

Destarte, no foro pessoal de um diário, Franco Nogueira parece ter escolhido digladiar-se pela causa imperial, cujos inimigos eram tanto os comunistas quanto os democratas, termos que prenunciavam o que viria a ser também sua vocação pública:

 

“Agora desviaram-se as atenções para o Imperador. O mais cordatos limitam-se a falar dele como de um indivíduo privado. Devassam-lhe a vida, os passatempos e o vestuário; exigem que o Trono esteja a dieta como todo o japonês, com o mesmo arroz e nem um bago a mais; e criticam-lhe o salário máximo estabelecido pelo parlamento. Uma escassa minoria de energúmenos (em que avultam os comunistas) vai mais longe. Para estes, Sua Majestade é simplesmente um criminoso nato. Foi ele que fez a guerra, usando de ardis e de processos ínvios; é também culpado de ter perdido a guerra, por frouxidão na sua conduta; e agora mesmo está cometendo o pecado hediondo de não aceitar o evangelho novo, convertendo-se, como lhe compete, à democracia benfazeja. É um inimigo fidagal do povo e deve por isso ser julgado, em público, aplicando-se-lhe a pena máxima. Se isso não é possível então que saia do palácio, e ande a pé, e abanque num restaurante de Ginza, com amigos, para uma rodada de cerveja, com o chapéu para a nuca. Que se mostre, em suma, um autêntico democrata, exemplo e guia. Só assim os seus crimes serão arquivados.” [Nogueira, 2019, p. 127]

 

Nas observações que compõem seu diário, o diplomata parece fazer exercícios de tolerância e compreensão que, na prática, seriam uma velada autorreferência ao regime português; um elogio às formas autoritárias e tradicionalistas da política. No contexto do pós-guerra, sua visão de mundo reflete amplamente o discurso salazarista de equidistância declarada aos “cezarismos pagãos” e às democracias, como descrito por Reis Torgal [Torgal, 2001, p. 318]. Segundo o próprio Franco Nogueira, sua hipótese seria confirmada após ser reconhecida até pelos norte-americanos:

 

“[Os americanos] cedo compreenderam que o Trono é instituição-base, e que por seu intermédio podem mais facilmente operar. Além disso, representa estabilidade, solidez, garantia de união. Nunca desejaram, portanto, que o Imperador fosse incluído na extensa lista dos criminosos de guerra. Sem o Trono, com efeito, o Japão de lés a lés seria fornalha de paixões convulsivas e desencontradas.” [Nogueira, 2019, p. 130]

 

Desta experiência de Franco Nogueira em Tóquio, conclui-se, em primeiro lugar, que o diplomata já punha, muito tempo antes de seu ministério, a preservação da ordem social como primeiro objetivo da política. Sua perspectiva não deixava de fortalecer-se diante do que entendia ser uma comunhão de perspectivas com Washington; a política moderada desenvolvida pelos norte-americanos para o Japão, poupando o Imperador Shōwa de cortes marciais e privilegiando a reconstrução da ordem no país.

Mas o Japão de Franco Nogueira existia com propósitos alheios a Washington e sua geopolítica. O conhecimento ostentado sobre a história do país lhe era útil como acusação à democracia pela falta de propósito nacional. As observações de sua experiência na capital nipônica lhe convenciam da pessoalidade natural do poder e do fundamento cultural das sociedades estamentais. Em última instância, as imagens orientais construídas pelo futuro ministro reforçavam a postura oficial do Estado Novo de censura às inclinações democráticas. Sua leitura do Japão produzia justificativas para um regime reacionário e oligárquico em Portugal.

 

Referências

Gustavo Souza de Deus da Silva é doutorando em História pelo PPGHIS-UFRJ, e pesquisa temas ligados à política externa portuguesa e à descolonização.

 

LUCENA, Manuel de. Os lugares-tenente de Salazar. Lisboa: Alétheia Editores, 2015.

NOGUEIRA, Franco. Tóquio Diário, 1946. Lisboa: Tinta da China, 2019.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

TORGAL, Luís Reis. O Estado Novo. Fascismo, Salazarismo e Europa. In. TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. 2. Ed. São Paulo: UNESP, 2001.

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