ALBERTO FRANCO NOGUEIRA E A DEMOCRACIA JAPONESA
O sociólogo português Manuel de Lucena, em
texto biográfico sobre Alberto Franco Nogueira, último Ministro dos Negócios
Estrangeiros de António Salazar, alude a uma guinada do personagem à
extrema-direita, quando da transição do controle do Estado Novo para Marcelo
Caetano. O autor escreve que:
“[E]m política interna,
[Franco Nogueira] advogou o reforço da luta ideológica e da ordem pública,
adoptando, em face do ensaio marcelista de “renovação na continuidade”, uma
atitude de permanente alerta e freqüente censura – frontal ou velada – muito
temerosa dos passos renovadores. Assim, foi caindo nas boas graças de sectores
de direita e de extrema-direita – aos quais não pertencia e que se tinham
mostrado hostis à sua entrada para o governo – acabando por ser considerado,
com alguma justiça, um dos maiores expoentes da ala conservadora do regime.”
[Lucena, 2015, p. 139]
Contudo, a publicação recente do diário do
Ministro, escrito enquanto ainda um delegado do serviço exterior, contém
possíveis evidências de que suas predileções estariam neste espectro bem antes
de sua participação na política nacional. Por um lado, sua narrativa sobre a
história japonesa se aproxima do que se poderia considerar um elogio ao regime
fascista que guiara o país durante a Segunda Guerra Mundial. De outro, é
marcante o modo como o autor deprecia a experiência liberal dos japoneses, ao
destacar matérias jornalísticas que lhe comprovariam os contornos jocosos da
autodeterminação popular.
“Da resma de jornais que devorei uma
impressão me ficou: o japonês jogou o todo pelo todo, em pleno. Tudo foi
subordinado ao propósito da vitória: considerações e interesses pessoais não
existiram e os sacrifícios fizeram-se por bitola grande, logo de início. Dum
liberalismo mais ou menos anódino, formal na essência e praticado apenas como
decalque do Ocidente, passou-se ao autoritarismo que faz agir e pensar como um
só. Dantes, partidos havia vários, democráticos ou socialistas por rótulo; as
eleições tinham aspecto de liberdade, muito embora mais ainda do que na Europa
a corrupção fosse de rigor; e a Dieta era o parlamento onde discutiam com
cerimônia e fleuma os representantes dos antigos clãs feudais do Japão
Velho.” [Nogueira, 2019, p. 62]
Se ainda não era acusada por todos os crimes
de lesa humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, a política
externa japonesa já havia sido formalmente responsabilizada por seu extremo
belicismo, desde, pelo menos, 1931, com a publicação do Lytton Report. Ainda no contexto da Liga das Nações, Tóquio
recebera mal as conclusões do relatório, revelador de que seriam os nipônicos
os agressores na Questão da Manchúria, e retirara-se da organização, acentuando
um ciclo de isolamento e ocupação ilegal de territórios. Uma vez que estes
fatos tiveram ampla evidência em ambientes diplomáticos, os comentários de
Franco Nogueira sobre a expansão colonial do Japão permitem entrever uma notável
complacência para com a experiência autoritária daquele país:
“Então principiaram os sonhos e a nação
meteu-se à forja a temperar o gládio. Quando decidiu a grande aventura, não
hesitou mais: preparou corpo e alma para o que desse e viesse. E fê-lo com espírito
de jogador: arriscou em cheio numa carta.” [Nogueira, 2019, p. 63]
O elogio de Franco Nogueira à grande aventura
japonesa continua, denotando que a clivagem entre regimes autoritários e
liberais seria, naquele instante, mais evidente para o diplomata do que uma
contraposição cultural entre Oriente e Ocidente. Sua narrativa chegaria ao
ponto de representar a expansão nipônica em direção à China e aos mares do sul
como uma “cruzada” para libertar a Ásia:
“O povo sentia o orgulho das raças patrícias e
a nação ficou possessa da mística que leva à cruzada. Expandiu-se, irradiou e
ficou cega pela perspectiva. Não era já apenas a ânsia dum Japão maior; foi a
crença na responsabilidade de libertar a Ásia do escalracho ocidental. Para
isso invadiu a China e seguiu para o Sul.”
[Nogueira, 2019, p. 64]
Chegariam dias em que aquela mesma mística
levaria os portugueses à luta por suas colônias africanas. Por ora, cabia ao
futuro Ministro do Estado Novo notar nos nipônicos um traço que viria a
recomendar aos lusitanos, anos mais tarde:
“No material e mecânico, reuniu quanto pôde.
Armou-se durante anos, e à refrega utilizou tudo duma assentada, sem guardar
reservas e em luta sem quartel. Externamente, enfileirou com os que na altura
pareciam futuros triunfadores: alemães e italianos. Mas foi no moral,
principalmente, que se construiu mais sólida armadura. Neste particular, não
deixa dúvidas a crônica da vida japonesa antes e durante a guerra, mesmo
censurada como foi. No noticiário do dia-a-dia se descobre o esforço para fazer
da nação um todo homogêneo e inteiriço, duma só fé.” [Nogueira, 2019, p. 63]
Os termos com que descreve a entrada do Japão
na Segunda Guerra Mundial evidenciam que o diplomata já manifestava predileções
autoritárias, antes mesmo de seu Ministério e de sua atuação parlamentar. A
violência da expansão colonial nipônica ficou em segundo plano e suas anotações
dedicaram-se à construção de imagens de grandeza e unidade que teriam movido o
passado recente do país. Quanto à democracia, que após a guerra retornara,
Franco Nogueira reservava a comparação metafórica de um trem sequestrado por
passageiros na linha de Tóquio a Atami, notícia nos jornais da terça-feira, dia
18 de junho de 1946:
“O outro sucesso [curioso] pertence à mesma
bitola democrática. Ao que refere a notícia, passou-se na linha férrea de
Tóquio a Atami. Todas as manhãs, pelo cedo, corre um comboio para o sul e
regressa pelo lusco-fusco. Pois bem: numa estação intermédia, quatro
energúmenos invadiam a locomotiva, amarravam fogueiro e maquinista e manejavam
eles próprios a aparelhagem até o comboio atingir o destino; à chegada soltavam
os dois tripulantes. E na viagem de retorno voltavam a manietá-los e de novo
dirigiam a máquina até à mesma estação. Durou a brincadeira uma semana e
apurou-se que os quatro desaustinados nada sabiam de locomotivas e caminhos de
ferro. Os dois presos nunca se queixaram; nem o público nem o pessoal
ferroviário deram fé de coisa alguma de anormal; e não houve desastres ou
acidentes. Quanto ao motivo invocado pelos quatro sujeitos para a proeza, era
este: que a autoridade agora pertence ao povo, a este competindo mandar em
tudo, na condução dos comboios inclusivamente. Estavam, portanto, no exercício
pleno dos seus direitos cívicos. O Governo meteu-os na cadeia. Mas o jornal
protesta e afirma que se pretende coarctar a liberdade de quatro democratas!”
[Nogueira, 2019, pp. 86 e 87]
A passagem escolhida por Franco Nogueira
demonstra uma visão oligárquica da política, caricaturando o crivo popular de
modo que, como sua trajetória demonstrará, não estaria restrito ao Japão. Ao
rir-se do fato de que populares não estavam preparados para conduzir comboios,
o jovem diplomata também evidencia a falta de consonância entre preceitos
liberais e a experiência da sociedade japonesa. Ademais, além do preparo,
faltariam também o direito e a autoridade para decidir a execução prática dos
princípios democráticos. De tal representação pode-se concluir que o personagem
alimentava um caráter restrito e autoritário da democracia, que não deveria ser
universal e participativa, mas exercida pelos capacitados em nome da ordem
social; este sim, o verdadeiro interesse da população. Tanto quanto o controle
dos trens estava nas mãos dos maquinistas, o poder deveria ser organizado e
gerido em cada nação pelos seus mandarins.
“O japonês tem perfeita consciência de que o
Imperador é um ser humano, que nasce, dorme, come, bebe, faz a barba e espirra
como o vizinho da esquina. Simplesmente, esse ser humano é um símbolo: e este é
sagrado porque é o símbolo da pátria, do próprio Japão, dessa mesma
nacionalidade que se mantém íntegra há dois mil anos. [...] Ele concentra a
presença dos vivos e a presença dos mortos, a cadeia dos antepassados. É a
tradição viva.” [Nogueira, 2019, p. 129]
O diplomata havia constatado, em meio aos
escombros do pós-guerra, que o nipônico não tinha uma essência democrática,
tipo de doutrina política natural ao mundo anglo-saxão, e que as vozes
estridentes de seu novo regime eram tão desarmônicas com seu verdadeiro
interesse que não causaram mais que torturas:
“No fundo, ajudam à confusão geral e não
atiram para a arena uma idéia construtiva que auxilie a solução dos problemas
imediatos. Num ponto, todavia, se congregam as facções díspares: no desejo de
paz, proclamada em vozes tão estridentes que mais se diriam gritos de guerra.
Entrementes, a massa anônima, a que paga o imposto e cultiva o arroz, vai
padecendo com estoicismo as torturas da democracia nova: inflação que atira os
preços às alturas; comércio exterior proibido; mercado negro; desorganização
administrativa; corrupção; e, sobretudo, eleições de quarto em quarto de hora,
visto que hoje tudo aqui se escolhe por sufrágio do povo soberano, desde o
contínuo da regedoria local até ao Primeiro-Ministro. Para onde irá o Japão?”
[Nogueira, 2019, p. 102]
Destarte, no foro pessoal de um diário,
Franco Nogueira parece ter escolhido digladiar-se pela causa imperial, cujos
inimigos eram tanto os comunistas quanto os democratas, termos que prenunciavam
o que viria a ser também sua vocação pública:
“Agora desviaram-se as atenções para o
Imperador. O mais cordatos limitam-se a falar dele como de um indivíduo
privado. Devassam-lhe a vida, os passatempos e o vestuário; exigem que o Trono
esteja a dieta como todo o japonês, com o mesmo arroz e nem um bago a mais; e
criticam-lhe o salário máximo estabelecido pelo parlamento. Uma escassa minoria
de energúmenos (em que avultam os comunistas) vai mais longe. Para estes, Sua
Majestade é simplesmente um criminoso nato. Foi ele que fez a guerra, usando de
ardis e de processos ínvios; é também culpado de ter perdido a guerra, por
frouxidão na sua conduta; e agora mesmo está cometendo o pecado hediondo de não
aceitar o evangelho novo, convertendo-se, como lhe compete, à democracia
benfazeja. É um inimigo fidagal do povo e deve por isso ser julgado, em
público, aplicando-se-lhe a pena máxima. Se isso não é possível então que saia
do palácio, e ande a pé, e abanque num restaurante de Ginza, com amigos, para
uma rodada de cerveja, com o chapéu para a nuca. Que se mostre, em suma, um
autêntico democrata, exemplo e guia. Só assim os seus crimes serão arquivados.”
[Nogueira, 2019, p. 127]
Nas observações que compõem
seu diário, o diplomata parece fazer exercícios de tolerância e compreensão
que, na prática, seriam uma velada autorreferência ao regime português; um
elogio às formas autoritárias e tradicionalistas da política. No contexto do
pós-guerra, sua visão de mundo reflete amplamente o discurso salazarista de
equidistância declarada aos “cezarismos pagãos” e às democracias, como descrito
por Reis Torgal [Torgal, 2001, p. 318]. Segundo o próprio Franco Nogueira, sua
hipótese seria confirmada após ser reconhecida até pelos norte-americanos:
“[Os americanos] cedo
compreenderam que o Trono é instituição-base, e que por seu intermédio podem
mais facilmente operar. Além disso, representa estabilidade, solidez, garantia
de união. Nunca desejaram, portanto, que o Imperador fosse incluído na extensa
lista dos criminosos de guerra. Sem o Trono, com efeito, o Japão de lés a lés
seria fornalha de paixões convulsivas e desencontradas.” [Nogueira, 2019, p.
130]
Desta experiência de Franco
Nogueira em Tóquio, conclui-se, em primeiro lugar, que o diplomata já punha,
muito tempo antes de seu ministério, a preservação da ordem social como
primeiro objetivo da política. Sua perspectiva não deixava de fortalecer-se
diante do que entendia ser uma comunhão de perspectivas com Washington; a
política moderada desenvolvida pelos norte-americanos para o Japão, poupando o
Imperador Shōwa de
cortes marciais e privilegiando a reconstrução da ordem no país.
Mas o Japão de Franco
Nogueira existia com propósitos alheios a Washington e sua geopolítica. O
conhecimento ostentado sobre a história do país lhe era útil como acusação à
democracia pela falta de propósito nacional. As observações de sua experiência
na capital nipônica lhe convenciam da pessoalidade natural do poder e do
fundamento cultural das sociedades estamentais. Em última instância, as imagens
orientais construídas pelo futuro ministro reforçavam a postura oficial do
Estado Novo de censura às inclinações democráticas. Sua leitura do Japão
produzia justificativas para um regime reacionário e oligárquico em Portugal.
Referências
Gustavo Souza de Deus da
Silva é doutorando em História pelo PPGHIS-UFRJ, e pesquisa temas ligados à
política externa portuguesa e à descolonização.
LUCENA, Manuel de. Os lugares-tenente de
Salazar. Lisboa: Alétheia Editores, 2015.
NOGUEIRA, Franco. Tóquio Diário, 1946.
Lisboa: Tinta da China, 2019.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como
invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
TORGAL, Luís Reis. O Estado Novo. Fascismo,
Salazarismo e Europa. In. TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. 2.
Ed. São Paulo: UNESP, 2001.
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